28 junho 2011

Afinal a terra é redonda

Acabo de ler este texto na newsletter do Millennium BCP e pareceu-me tao bem escrito, correcto e didáctico que me apetece reproduzi-lo na íntegra. É um bocado grande mas se existe algo de economista dentro de uma pessoa valerá a pena ler.

O autor é o José Maria Brandão de Brito do departamento de Research de Mercados Financeiros do Millennium bcp.


Afinal a terra é redonda


O mundo parece plano…

Thomas Friedman, conhecido articulista do New York Times, escreveu um livro intitulado "O mundo é plano", no qual discorre uma apologia apaixonada da globalização. Tão entusiástica prosa não é surpreendente: estávamos em 2005, ano em que o crescimento do PIB mundial foi o mais elevado desde que há registo e em que a interpenetração económica internacional atingiu uma intensidade sem precedente, pelo menos, desde o grande surto de globalização na transição dos séculos XIX e XX - curiosamente um período ao qual se seguiu uma litania de horrores, como a Primeira Guerra Mundial e a hiperinflação na Alemanha. No essencial, a referida obra assemelha a complexa integração das várias economias a uma gigantesca linha de produção: daí a metáfora do título do livro de Friedman. Contudo, o contributo para a globalização foi repartido desigualmente entre os principais blocos mundiais. De forma caricatural, enquanto os mercados emergentes, encabeçados pela China, mas também o Japão e a Alemanha, se empenharam laboriosamente em alimentar a mega linha de produção, países como os EUA e a "periferia" da área do euro, posicionaram-se no fim da linha a consumir tudo o que ela expelia. Não é preciso ser economista encarteirado para descortinar que este padrão comercial era insustentável; porém, sob o manto mágico da globalização, ele perdurou, pelo menos, uma década.

...mas, na realidade, é redondo

A contrapartida do desequilíbrio comercial foi a transferência sistemática de fundos dos importadores para os exportadores. Acontece que, por ausência de alternativa, países como a China ou a Alemanha reciclavam parte importante dos proveitos das suas exportações para os países como os EUA ou Portugal. Este esquema possibilitou, por um lado, financiar a voracidade consumista dos importadores e, por outro, dar vazão à pulsão mercantilista dos exportadores. A circularidade perversa entre os fluxos financeiros e os de mercadorias, mais do que contrariar optimistas indefectíveis, como Friedman, para quem a vida económica se tinha tornado linear (plana), ajuda a explicar como foi possível gerar níveis patológicos de dívida entre os países superavitários e os deficitários.

Não há volta a dar

Chegada a crise, seria de esperar a correcção dos desvios do paradigma anterior. Mas tal não aconteceu, antes pelo contrário. Isto porque os regimes cambiais não foram permitidos ajustar de forma a eliminar o fosso de competitividade existente entre as economias excedentárias e as deficitárias. A esta distorção, outra se juntou com a resposta das autoridades aos efeitos recessivos da crise sob a forma de políticas acomodatícias. A manutenção do elevado grau de interdependência internacional e a permanência de uma estrutura cambial desajustada implicou que a explosão de liquidez providenciada pelas autoridades monetárias se difundisse qual feixe de luz pelo globo, numa nova e exorbitada versão da tal circularidade perversa. O resultado foi a intensificação do endividamento e a eclosão de pressões inflacionistas. Não obstante a sua natureza global, o ressurgimento da inflação foi mais expressivo nas economias emergentes, sendo que as sucessivas tentativas de aperto das condições monetárias dos respectivos Bancos Centrais mostraram-se, até à data, infrutíferas - por uma razão óbvia: o regime de câmbios quase-fixos da maioria dos mercados emergentes face ao dólar implica uma quase universalidade da política monetária altamente expansionista dos EUA. Daí que não haja volta a dar: os mercados emergentes terão que permitir uma apreciação significativa das suas moedas atinente a controlar a inflação recalcitrante. Uma das consequências da eventual apreciação das moedas dos mercados emergentes é a redução da poupança interna gerada por estas economias - por via da diminuição da competitividade externa e pelo efeito indutor do consumo que uma moeda mais forte aporta. Reportando ao caso da China, uma menor necessidade de reciclagem de fundos significaria uma menor procura chinesa por títulos de dívida americana, o que dada a particular importância deste investidor, levaria à subida das taxas de juro do dólar.

O caminho das pedras

A erosão da capacidade exportadora dos mercados emergentes e a subida global das taxas de juro tem efeitos recessivos, ainda que temporários. Mas por penoso que seja, este é o único caminho para a regeneração da economia global. Nos EUA, a subida das taxas de juro e a depreciação do dólar produzirão uma alteração profunda na estrutura da despesa e da produção: a poupança sobe em detrimento do consumo; o sector dos bens transaccionáveis é estimulada por contrapartida da redução do peso dos serviços; idêntica dinâmica se aplica às demais economias que padecem de défices externos crónicos. A consequente melhoria da posição externa é complementada por um processo inverso de aumento do consumo e abrandamento das exportações nas economias superavitárias. O resultado será o tão almejado reequilíbrio da economia internacional e uma lição: maximizar a produção e o consumo global sem cuidar das respectivas implicações financeiras constitui uma receita para o desastre. Afinal, a terra é redonda. Disso não vem mal ao mundo, basta aceitá-lo.

O ressurgimento da inflação não permite manter a estrutura económica global imutável. O que se segue deverá ser penoso, mas, simultaneamente, regenerador.

Sem comentários:

Enviar um comentário