30 setembro 2008

Afinal havia outra

Mudança de planos de última hora. Passámos de uma casa com vista para uma praça num bairro mais local para uma casa em frente à Opera bem no centro de Madrid... Em termos de tamanho são bastante parecidas por isso sosseguem-se as almas que já marcaram fim-de-semana aqui!

Este é também um momento bonito porque estreio o meu novo e lindo portátil! Estou naquele momento em que ainda não sou capaz de lhe tirar aquela membrana plástica que tem na tampa dizendo para mim mesmo que "fica quase tão bem e assim até está muito mais protegido". Felizmente daqui a umas horas a Ana vê isto e vai-me tirar este plástico sem apelo nem agravo. As mulheres também servem para estas coisas.

24 setembro 2008

Republica de los platanos


A sério que eu não queria escrever este post. Preferia mesmo não ter de pensar neste assunto. Mas deixo o meu desabafo sobre o sistema de arrendamento de casas em Espanha: ao contrário do que se passa em Portugal, ao alugarmos a casa através de uma agência imobiliária temos de pagar (nós, os inquilinos) uma mensalidade à agência pelo serviço prestado!!
Ou seja, o proprietário que não está para se chatear com nada, que não quer ter trabalho a mostrar a casa e contrata o serviço a uma agência é estupidamente beneficiado porque não tem de pagar um cêntimo. Para o inquilino, fica o encargo de pagar por um serviço que não é para si, que não lhe traz qualquer benefício e que ainda por cima causa entropias porque envolve uma terceira pessoa absolutamente desnecessária.

21 setembro 2008

O último voo do flamingo


Mia Couto. É longo mas vale a pena...

"Então ela contou. Eu repetia palavra por palavra, decalcando sobre a voz cansada dela. Rezava: havia um lugar onde o tempo não tinha inventado a noite. Era sempre dia. Até que, certa vez, o flamingo disse:
– Hoje farei meu último voo!
As aves, desavisadas, murcharam. Tristes, contudo, não choraram. Tristeza de pássaro não inventou lágrima. Dizem: lágrima dos pássaros se guarda lá onde fica a chuva que nunca cai.
Ao aviso do flamingo, todas as aves se juntaram. Haveria uma assembleia para se conversar o assunto. Enquanto o flamingo não chegava, se escutavam os pios em rodopios. Se acreditava em tais ditos? Podia-se e não. Fosse ou não fosse, todos se demandavam:
– Mas vai voar para onde?
– Para um sítio onde não há nenhum lugar.
O pernalta, enfim, chegou e explicou – que havia dois céus, um de cá, voável, e um outro, o céu das estrelas, inviável para voação. Ele queria passar essa fronteira.
– Porquê essa viagem tão sem regresso?
O flamingo desvaloriza seu feito:
– Ora, aquilo é longe, mas não é distante.
Depois ele foi internando-se nas árvores sombrosas do matagal. Demorou. Só pareceu quando a paciência dos outros já envelhecia. Os bichos de asa se concentraram na clareira do pântano. E todos olharam o flamingo como se descobrissem, apenas então, a sua total beleza. Vinha altivo, todo por cima da sua altura. Os outros, em fila, se despediam, Um ainda pediu que ele desfizesse o anúncio.
– Por favor, não vá!
– Tenho que ir!
A avestruz se lhe interpôs e lhe disse:
– Veja, eu, que nunca voei, carrego as asas como duas saudades. E, no entanto, só piso felicidades.
– Não posso, me cansei de viver num só corpo.
E falou. Queria ir lá para onde não há sombra, nem mapa. Lá onde tudo é luz. Mas nunca chega a ser dia. Nesse outro mundo ele iria dormir, dormir como um deserto, esquecer que sabia voar, ignorar a arte de pousar sobre a terra.
– Não quero posar mais. Só repousar.
E olhou par cima. O céu parecia baixo, rasteiro. O azul desse céu era tão intenso que se vertia líquido, nos olhos dos bichos.
Então, o flamingo se lançou, arco e flecha se crisparam em seu corpo. E ei-lo, eleito, elegante, se despindo do peso. Assim, visto em voo, dir-se-ia que o céu se vertebrara e a nuvem, adiante, não era senão alma de passarinho. Dir-se-ia mais: que era a própria luz que voava. E o pássaro ia desfolhando, asa em asa, as transparentes páginas do céu. Mais um bater de plumas e, de repente, a todos pareceu que o horizonte se vermelhava. Transitava de azul para tons escuros, roxos e liláceos. Tudo se passando como um incêndio. Nascia, assim, o primeiro poente. Quando o flamingo se extinguiu, a noite se estreou naquela terra.
Era o ponto final. No escurecer, a voz de minha mãe se desvaneceu. Olhei o poente e vi as aves carregando o sol, empurrando o dia para outros aléns.
Aquela era a minha última noite desse retiro nos matos. Manhã seguinte eu já entrava na vila, como quem regressa a seu próprio corpo depois do sono."